Se
existe uma área que é injusta e consistentemente negligenciada no set de
filmagem, essa área é o som. Ninguém presta atenção naquele cara que vagueia
com o microfone na mão… até que você esteja fazendo sombra em algum lugar que
não deveria. Nas últimas duas semanas, esse cara era eu.
Comecemos
pelo fato de que o AFI não tem uma disciplina de som. Isso significa que
praticamente todas as funções do set são exercidas por pessoas extremamente
capacitadas na sua área, enquanto o som fica a cargo de uma boa alma que
normalmente não estaria no set, mas que sabe-se lá porque se sujeitou a ajudar
as outras equipes. Isto é, roteiristas e editores.
Nos
curtas que estamos gravando este ano, a equipe de câmera é composta de pelo
menos seis pessoas: diretor de fotografia, operador de câmera, assistente de
câmera, gaffer, key grip e swing.
A
equipe de som é composta por dois “caras”.
O
equipamento de luz ocupa um caminhão inteiro, mas é claro que o que está sempre
no caminho é nossa maleta de som e o boom, que ninguém nunca sabe onde foi
parar. Nem os cabos de som são dignos de uma maleta exclusiva e precisam
dividir a o espaço com os cabos de vídeo. Na nossa maleta, um microfone
unidirecional e um lapela com fio. Microfones sem fio ainda são modernos
demais.
Apesar
de tudo conspirar contra, a primeira experiência como operador de boom no curta
Broken Branch foi incrível. Mas precisamente, foi hilária. A equipe de câmera
tinha lá seus trinta minutos para preparar a cena. Ai de nós do som se não
estivéssemos prontos na hora em que a câmera estivesse posicionada.
Primeira
cena: um diálogo entre um mecânico e um advogado em um escritório minúsculo.
Todas as janelas fechadas, três refletores apontados para nós, seis pessoas
respirando (sempre que possível), sem contar a câmera e a dolly. Chegam os
caras do som. No caso, nós. Penso comigo: “Nossa, essa cena vai ficar
sensacional na tela. Mas já pensou que demais se a gente também pudesse OUVIR o
diálogo?” Aparentemente somos os únicos com esse pensamento revolucionário.
Temos
que nos encaixar onde sobra espaço, isto é, embaixo da mesa. O microfone está a
quilômetros do ator. Informamos ao diretor que o som não está bom… e aí vem o
clássico: “depois a gente dubla”. É ótimo ouvir isso depois de parecer um
contorcionista tentando captar o melhor som. Evidentemente, no dia seguinte
todo mundo esquece desses detalhes, e o produtor informa: “o editor disse que o
som da primeira cena está muito baixo”. “Sério?! Tivemos tanto tempo pra nos
preparar… Quem iria imaginar uma coisa dessas!”
Essa
dinâmica continua ao longo do dia, com algumas variações. A maior parte do
tempo, porém, estamos esperando a cena ser montada… enquanto enrolamos cabos.
Se tem uma coisa que aprendi no set foi a enrolar cabos.
Entre
uma cena e outra, converso com a australiana supervisora de roteiro, que tem o
excitante trabalho de anotar todas as cenas, takes e timecodes, e cuja
principal atividade no set, assim como eu, é… esperar. Aproveitamos o tempo
parar tirar sarro do (inexistente) craft service, que está sendo feito por um
aluno do curso de produção.
“A
equipe está derretendo. Precisamos de água no set” - anuncia o assistente de
direção no walkie-talkie. Vem a resposta: “A água acabou. O fulano já foi
comprar.”
Hora
do almoço. Cadê os pratos? Minha colega australiana cai na gargalhada: “Meu
Deus! Não temos pratos! Será que ele vai conseguir resolver isso sozinho?
Talvez seja demais pra ele.” Ela tinha razão… O responsável pelo craft service,
DE FATO, pede minha ajuda:
-
“Você fala espanhol?”
-
“Não, eu falo português.”
-
“Mas você sabe falar espanhol, não sabe?”
-
“Sei, por quê?”
-
“Vem comigo!”
Sou
arrastado até a lojinha ao lado para solicitar, em espanhol, alguns pacotes de
pratos descartáveis. Até agora não entendi da onde ele tirou a ideia de que a
atendente não falava inglês…
A
comida é colocada na mesa. Sob um sol de 40 graus. Um dos membros da equipe de
câmera que carregou escadas e tripés o dia todo ajuda a carregar as cadeiras.
-
“Não podemos colocar essa mesa ali na sombra?” – ele pergunta ao produtor.
-
“Não, ali já é a propriedade daquela senhora.”
-
“Mas não podemos pelo menos perguntar? Eu mesmo vou lá, posso?”
-
“Na verdade, não.”
-
“Ah é? Então também não posso carregar essas cadeiras!”
Ele
parte, faminto, sedento, suando e agora também irritado.
Eu,
minha colega e o ator observamos a cena, contendo o riso. Ela começa a se
servir de arroz. “Não tem colher de servir?”. Não, não tem. Ela se serve
pacientemente com uma colher de sobremesa. “Desculpe pessoal, vai demorar um
pouco.”
Comida
no prato, viramos para trás… e a mesa foi embora! Olhamos um para o outro e
caímos na gargalhada. Descobrimos que a mesa foi levada para o jardim na frente
da casa, onde há sombra. Conduzimos o ator até lá. Sentamos… e onde estão os
talheres? Com medo de pedir qualquer coisa, o ator contenta-se em cortar a
carne com uma colher. A essa altura, ninguém mais consegue comer de tanto rir.
Vou até o outro lado da casa e volto com facas. Pouco depois, chega o cooler
com águas e refrigerantes, quentinhos, recém-colocados no gelo, prontos para
matar nossa sede.
…
Inexplicavelmente,
lá estou eu, na semana seguinte, no set de Guttersnipes, prestes a exercer a
mesma função de operador de boom. O filme conta com uma personagem autista que
repete a fala “Where’s mommy?” trezentas e oitenta e seis mil vezes. Em cada
take. A locação é um beco no centro de Los Angeles. Um lugar lindo de se ver…
terrível de se cheirar.
Já
no primeiro dia, eu e meu novo sound mixer nos perdemos no caminho da base até
o quarteirão onde a cena seria filmada. Olho para um lado, uma modelo, frente a
uma parede toda pichada, posando para um fotógrafo. Viramos a esquina e lá está
um grupo de pessoas com refletores e uma câmera… mas não, não é a nossa equipe.
Voltamos, viramos a direita… e lá estão eles. Não, espera! É OUTRA equipe!
Voltamos para a base e membros da nossa equipe limpam o sangue fictício na
calçada, usado para uma OUTRA filmagem no dia anterior. Me dou conta de que
estou em Los Angeles e que a cada rua pode haver uma equipe de filmagem… e de
que o mais bizarro ainda está por vir.
Uma
hora da manhã. Estamos prestes a filmar a cena mais intensa do filme quando, de
repente, um carro de polícia passa devagar pela rua. Minutos depois, outro. E
outro. E então, um helicóptero rasante começa a rondar o quarteirão com um
holofote, praticamente apontado para nós, até que uma voz grita em um megafone:
“Fulano de Tal. Renda-se agora! Você não tem para onde fugir!”
Aí
já é demais. Recolhemos todo o equipamento e encerramos o dia de trabalho. Três
dias depois, terminam as filmagens e meus dias de escravidão voluntária no set.
Ficam
as lembranças das aventuras no set… e a certeza de que sou mais feliz sentado
no meu computador, criando todo esse universo que um dia um grupo de pessoas
incrivelmente esforçadas fará de tudo para tornar realidade.