segunda-feira, 31 de março de 2014

No pain, no gain

Hoje faz seis semanas que uma dor de cabeça me acompanha. É uma dorzinha leve que começa na nuca, passa pelas têmporas e se encerra no rosto.

Enquanto passeio por médicos e faço exames para saber o que acontece, começo a lembrar de todas as dores que já senti.

A primeira vez que me lembro claramente de ter sentido dor foi aos cinco anos de idade. Estávamos em uma viagem de família na casa de uma prima, prestes a seguir para outra cidade. As malas prontas, janelas sendo fechadas. Eu aguardava no topo da escada. Minha irmã tentava fechar a porta do quarto, mas não conseguia. Ela fazia força, mas a porta não fechava. “Tem alguma coisa prendendo a porta!”

Era a minha mão.

Esmagada ao lado das dobradiças, entre a porta e o batente, minha mão impedia que a porta se fechasse. Minha irmã, de costas, não me via. Eu, em choque, não gritava. Não me lembro muito do que aconteceu depois. Lembro que eu chorava, lembro que minha mãe acariciava minha mão no táxi. Mas não me lembro da dor em si.

Alguns anos depois, correndo pelo playground do prédio, senti que tinha pisado em algo estranho. Chovia, e a água lavou o pouco de sangue que saiu da ferida. Dias depois descobri que tinha um caco de vidro alojado no pé. Tentamos a farmácia, mas um mero toque já me fazia tremer de dor. Ficou claro que eu iria precisar de anestesia. Fomos ao pediatra. “Só uma picadinha e você não vai sentir mais nada”.

Dessa dor eu me lembro muito bem.

Lembro como eu esmagava a mão da minha mãe, que devia estar em tanta dor quanto eu. Lembro também da cara das crianças da sala de espera, depois de ouvirem meu grito.

Conforme fui ficando mais velho, as dores físicas foram ficando mais comuns. Teve a luxação no braço jogando bola, teve a pedra no rim. E, talvez por isso, meu corpo tenha criado seu próprio mecanismo de defesa: o ataque de riso.

É chegar perto de uma agulha ou começar a sentir uma dor mais forte, pronto: não consigo controlar a risada. Se estou tirando sangue, a enfermeira pergunta, entretida: “Tá tudo bem?” Certa vez em uma cirurgia para a retirada de um nevo nas costas, a dermatologista ria comigo: “Se você não parar de rir eu não consigo cortar!”

Com a idade, começaram a vir também as outras dores. Aquelas que não são físicas. Aquelas que, nem de longe, provocam ataques de riso.

Tem a dor da saudade. Do prédio que você já não mora mais, da escola que foi demolida, dos lugares que você já não visita, da rotina que você gostava e já não existe mais. E principalmente das pessoas. Daqueles amigos que eram parte tão íntima da sua vida e que ficaram pra trás; daqueles que ficaram longe. Mas essa dor é mais doce, deixa um gosto bom.  É uma dor de “ah, que pena que acabou!” e pra essas não tem melhor remédio do que o tempo.

Tem a dor da espera. Do resultado de uma prova, de um exame. Lembro o dia da divulgação da lista de aprovados no vestibular. Eu sentado no computador, ouvindo dezessete vezes a mesma música, atualizando a página do UOL de 3 em 3 segundos. A espera também pode ser por uma pessoa que não chega, que não liga, que não manda mensagem. Quantas vezes ainda não ficaria grudado ao telefone, checando a tela a cada piscada? Mas essa dor, como um sabor muito salgado que é eliminado com um simples copo d´água, pode passar em menos de um segundo, com o resultado que sai, a pessoa que chega, o telefone que toca.

Tem a dor do arrependimento. Essa é azeda, vai corroendo por dentro. Faz você viver e reviver aquele dia, aquela atitude, calculando tudo que poderia ter feito diferente. Mas essa não tem muito remédio: é aceitar que o que passou, passou, o que está feito, está feito e que nenhum exercício de ficção ou universo paralelo vai alterar o que já ficou pra trás.

E tem a dor da traição. Não só dessas que tem amante no meio. Traição dessas que você se sente enganado, seja qual for a situação; dessas que destroem suas expectativas, que tiram sarro de tudo aquilo em que você acreditava, como um adolescente cruel que ri de uma criança que ainda acredita em Papai Noel. É aquela dor que te deixa revoltado com o outro, consigo, com o mundo; que te faz querer deitar na cama, abraçar o cachorro e não sair mais de lá. E você nem tem um cachorro. Essa dor é a mais amarga. Deixa um gosto difícil de eliminar. E pra ela só tem um remédio: o perdão.

Para essas dores, o meu analgésico paliativo são as comédias, que provocam aqueles ataques de riso que meu corpo ainda não aprendeu a conceder. E não é que até as comédias precisam de momentos sem risos para valorizar a piada?

Como muitas das coisas que queremos evitar, as dores têm uma função importante: fazem a gente crescer. Elas mostram como a gente é forte; como a gente sempre consegue começar de novo. Mostram uma capacidade de superação que a gente não imaginava ter.

E, acima de tudo, mostram como é importante valorizar os momentos sem dor.