Tudo começou quando entrei na garagem do prédio. O edifício
era novo, assim como seus moradores, e por isso era sempre recebido por um dos
seguranças, que olhava para o cartão no meu retrovisor, com o número do
apartamento, e perguntava:
— Qual é seu nome?
Eu respondia, ele checava uma planilha em uma
prancheta, abria o portão com um “bom descanso” e eu entrava com um “obrigado”.
Até que um dia assisti a uma palestra sobre a
dignidade, que a definia como “o valor
por meio do qual reconhecemos e exercemos de maneira habitual o respeito pelas
pessoas como seres únicos, com inteligência, vontade, liberdade e capacidade
para amar.”.
Reconhecer como seres únicos.
Como seres únicos.
Como um outro eu.
Naquela noite, cheguei ao prédio como de costume e
abaixei o vidro, enquanto o segurança apanhava sua prancheta com a expressão austera
de sempre.
— Qual é o seu nome? — perguntou, automaticamente.
— Filipe — respondi. — E o seu?
Ele parou, espantado.
Aquilo não estava no
protocolo.
— Oi?
— Qual é seu nome? — insisti.
— O meu?
— Sim.
— Geraldo.
— Boa noite, Geraldo! — disse sorrindo enquanto o
portão se abria.
Na noite seguinte, assim que me viu embicando na
garagem, Geraldo abriu o portão, esboçou um sorriso inédito e me cumprimentou,
sem tocar na prancheta:
— Boa noite, Seu Filipe, tudo bom?
Meu prédio tem 384 apartamentos. Naquele momento me
perguntei quantos sabiam o nome de Geraldo. Ou de Hilda. Ou de Andrade. Ou de
Júnior. Ou de tantos outros que nos cumprimentam diariamente. Quantos os
reconheciam como seres únicos?
Propus-me a “exercer
aquilo de maneira habitual” e, pouco depois, descobri que um dos seguranças
é meu xará, e que tem um irmão de três anos, e que esqueceu o jantar na quinta
passada, e que adora coxinha.
Outro dia no supermercado, passando pela quinta ou
décima vez pelo mesmo atendente, notei que a tela do computador dizia
“Shirley”.
— Você não tem cara de Shirley — brinquei.
— É que hoje eu vim disfarçado — ele respondeu,
rindo.
— Qual é seu nome?
— Everson.
Pronto. Agora Everson começa a sorrir sempre que me
vê no fim da fila, e vice-versa. Mês passado esteve de férias, foi visitar a
mãe no Mato Grosso. Quando me reencontrou num domingo à tarde, confessou que
achava que estaria de folga naquele dia, e recomendou que eu sempre cobrasse os
pontos pela sacola reciclável.
“Qual é seu nome?” Quatro palavras, meros segundos
de conversa, que tornam o dia do outro (e certamente o meu) consideravelmente
mais agradável. Uma conversa em que nos reconhecemos como mais do que cliente/atendente/ morador/funcionário,
mas como seres únicos, com inteligência,
vontade, liberdade e capacidade para amar. E nome próprio.
No início do ano passado, conheci um grupo de
pessoas em um projeto social, em Campinas. Meses depois, voltei à cidade para
um evento e reencontrei um deles.
— E aí, João, tudo bom?
Ele me olhou com a inconfundível expressão de “de
onde é que eu te conheço, mesmo?”. Refresquei sua memória, conversamos um pouco
e logo o convidei para vir a São Paulo, com um amigo em comum, para um evento
do mesmo projeto social. Ele veio. Depois veio de novo. E mais uma vez. E
outras. E assim nos tornamos grandes amigos. Tempos depois, divagando sobre os
primórdios da nossa amizade, perguntei por que ele havia decidido vir a São
Paulo naquela primeira vez.
— Porque você me chamou pelo nome.