Hoje faz seis semanas que uma dor de cabeça me acompanha. É
uma dorzinha leve que começa na nuca, passa pelas têmporas e se encerra no
rosto.
Enquanto passeio por médicos e faço exames para saber o que
acontece, começo a lembrar de todas as dores que já senti.
A primeira vez que me lembro claramente de ter sentido dor
foi aos cinco anos de idade. Estávamos em uma viagem de família na casa de uma
prima, prestes a seguir para outra cidade. As malas prontas, janelas sendo
fechadas. Eu aguardava no topo da escada. Minha irmã tentava fechar a porta do
quarto, mas não conseguia. Ela fazia força, mas a porta não fechava. “Tem
alguma coisa prendendo a porta!”
Era a minha mão.
Esmagada ao lado das dobradiças, entre a porta e o batente,
minha mão impedia que a porta se fechasse. Minha irmã, de costas, não me via.
Eu, em choque, não gritava. Não me lembro muito do que aconteceu depois. Lembro
que eu chorava, lembro que minha mãe acariciava minha mão no táxi. Mas não me lembro
da dor em si.
Alguns anos depois, correndo pelo playground do prédio, senti
que tinha pisado em algo estranho. Chovia, e a água lavou o pouco de sangue que
saiu da ferida. Dias depois descobri que tinha um caco de vidro alojado no pé.
Tentamos a farmácia, mas um mero toque já me fazia tremer de dor. Ficou claro
que eu iria precisar de anestesia. Fomos ao pediatra. “Só uma picadinha e você
não vai sentir mais nada”.
Dessa dor eu me lembro muito bem.
Lembro como eu esmagava a mão da minha mãe, que devia estar
em tanta dor quanto eu. Lembro também da cara das crianças da sala de espera,
depois de ouvirem meu grito.
Conforme fui ficando mais velho, as dores físicas foram
ficando mais comuns. Teve a luxação no braço jogando bola, teve a pedra no rim.
E, talvez por isso, meu corpo tenha criado seu próprio mecanismo de defesa: o ataque
de riso.
É chegar perto de uma agulha ou começar a sentir uma dor
mais forte, pronto: não consigo controlar a risada. Se estou tirando sangue, a
enfermeira pergunta, entretida: “Tá tudo bem?” Certa vez em uma cirurgia para a
retirada de um nevo nas costas, a dermatologista ria comigo: “Se você não parar
de rir eu não consigo cortar!”
Com a idade, começaram a vir também as outras dores. Aquelas
que não são físicas. Aquelas que, nem de longe, provocam ataques de riso.
Tem a dor da saudade. Do prédio que você já não mora mais,
da escola que foi demolida, dos lugares que você já não visita, da rotina que você
gostava e já não existe mais. E principalmente das pessoas. Daqueles amigos que
eram parte tão íntima da sua vida e que ficaram pra trás; daqueles que ficaram longe.
Mas essa dor é mais doce, deixa um gosto bom. É uma dor de “ah, que pena que acabou!” e pra
essas não tem melhor remédio do que o tempo.
Tem a dor da espera. Do resultado de uma prova, de um exame.
Lembro o dia da divulgação da lista de aprovados no vestibular. Eu sentado no
computador, ouvindo dezessete vezes a mesma música, atualizando a página do UOL de 3 em 3 segundos. A espera também pode ser por uma pessoa que não chega, que
não liga, que não manda mensagem. Quantas vezes ainda não ficaria grudado ao
telefone, checando a tela a cada piscada? Mas essa dor, como um sabor muito
salgado que é eliminado com um simples copo d´água, pode passar em menos de um
segundo, com o resultado que sai, a pessoa que chega, o telefone que toca.
Tem a dor do arrependimento. Essa é azeda, vai corroendo por
dentro. Faz você viver e reviver aquele dia, aquela atitude, calculando tudo
que poderia ter feito diferente. Mas essa não tem muito remédio: é aceitar que
o que passou, passou, o que está feito, está feito e que nenhum exercício de
ficção ou universo paralelo vai alterar o que já ficou pra trás.
E tem a dor da traição. Não só dessas que tem amante no
meio. Traição dessas que você se sente enganado, seja qual for a situação;
dessas que destroem suas expectativas, que tiram sarro de tudo aquilo em que
você acreditava, como um adolescente cruel que ri de uma criança que ainda
acredita em Papai Noel. É aquela dor que te deixa revoltado com o outro,
consigo, com o mundo; que te faz querer deitar na cama, abraçar o cachorro e
não sair mais de lá. E você nem tem um cachorro. Essa dor é a mais amarga.
Deixa um gosto difícil de eliminar. E pra ela só tem um remédio: o perdão.
Para essas dores, o meu analgésico paliativo são as comédias,
que provocam aqueles ataques de riso que meu corpo ainda não aprendeu a conceder.
E não é que até as comédias precisam de momentos sem risos para valorizar a piada?
Como muitas das coisas que queremos evitar, as dores têm uma
função importante: fazem a gente crescer. Elas mostram como a gente é forte;
como a gente sempre consegue começar de novo. Mostram uma capacidade de
superação que a gente não imaginava ter.
E, acima de tudo, mostram como é importante valorizar os
momentos sem dor.