Minha avó sempre fazia as coisas do seu jeito, e sempre conseguia o que queria. Uma das coisas que queria era que minha mãe fosse ao menos uma vez na vida a Jerusalém – uma viagem que ela mesma havia feito. Por isso, não me foi de grande espanto descobrir que a viagem que faria com minha mãe à Terra Santa começaria precisamente no data do seu aniversário. “Morreu, mas ainda assim consegue as coisas!” – brincamos.
Uma viagem de 17 dias, com um grupo de 40 pessoas cuja idade média era 75 anos, prometia aventuras – que começaram já no aeroporto: quarenta velhinhas na fila preferencial, atropelando-se umas as outras com seus carrinhos carregados de malas com fitinhas de santos por todos os lados. Menos de 15 horas (e incontáveis detectores de metais) depois, já estávamos cara a cara com o Papa, e com nossos celulares na cara dele. “Onde é que aperta pra filmar?”
Visitamos as basílicas papais, os museus do Vaticano, as ruínas romanas e, é claro, as lojinhas. Ao fim de cada dia o desafio era lembrar o que estava em qual igreja. “Onde estava o prego da cruz, mesmo?” “Não, lá era o túmulo do Pio XII!”.
Ao mesmo tempo em que tentavam conectar-se com o divino, alguns tentavam desvendar o mistério da insônia: teria sido o tiramisù às 11h da noite? O excesso de risoto? O jet lag não foi sequer considerado. Outros indignavam-se com a rudez dos italianos. “Todo mundo grita comigo,” frustrava-se uma. “Eles gritam com todo mundo, é o jeito deles, você não é especial,” explicava a outra.
Cinco dias e muitos gelatos depois, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao Oriente Médio em grande estilo: emperrando a porta giratória do hotel em Tel Aviv. “Este é o banheiro mais limpo de toda Europa!” clamou uma. “Estamos na Ásia,” corrigiu outra. Para a alegria da gerência, após o café da manhã mais farto de toda viagem (“ah, não tem um pãozinho de queijo?”) caímos mais uma vez na estrada no que seria o início de um ritmo enlouquecido pela Terra Santa.
A cada lugar sagrado, uma aventura, dividida com turistas de todo planeta com seus próprios guias e radinhos. “Não tô ouvindo nada, ele ‘tá falando alguma coisa?” “Tem que ligar!” “Mas tá ligado!” “Então acabou a bateria… Falei pra desligar à noite!” Cruzamos fronteiras rodoviárias que nos fizeram ter saudades da Estação da Sé e viajamos oito horas pelo deserto para visitar uma das novas maravilhas do mundo (ou para ficar esperando do lado de fora do parque, dependendo do cansaço…). Testemunhamos o milagre da comunicação entre mineiros e árabes. (“Ela quer uma sacolinha. Sa-co-li-nha.”) Boiamos e nos lambuzamos com a lama do Mar Morto, e de lambuja roubamos os tênis de alguém. “Ué, não é de nenhum de vocês? Ah, agora tá longe pra devolver, deixa pra lá…”. Caminhamos pelos templos onde Jesus pregava, pela gruta onde Jesus nasceu, pelo local onde Jesus teve a última ceia, pelo mar (que não é mar) onde Jesus andou sobre as águas, pelo rio onde Jesus foi batizado, pelas pedras por onde Jesus pode ou não ter caminhado. Invadimos as ruas de Jerusalém com nossos lencinhos cor de laranja que uma guia insistia em chamar de amarelo e com um guia que parecia estar num reality show onde vence quem chega primeiro; nos acotovelamos pelas estreitas escadarias da Via Sacra, apinhamo-nos por horas como adolescentes num show de rock para visitar o Santo Sepulcro – por quatro segundos.
E, sobretudo, tivemos grandes debates filosóficos.
As oliveiras do Monte das Oliveiras podem ser consideradas as mesmas da época de Jesus? Tudo bem ler a Bíblia pelado? Maria morreu virgem? Como pode aquela moça fazer uma leitura na missa assim, com os braços de fora? Os albinos são albinos porque só têm glóbulos brancos? Acho que Jesus era magro porque andava muito…
Duas semanas e seis hotéis depois, estávamos de volta ao aeroporto de Roma (por oito longas horas). Alguns sem voz, outros sem energia, outros sem saúde, outros sem dinheiro, mas todos cheios de reflexões. É impossível ficar indiferente a uma viagem desse tipo. Cada um à sua forma, tentávamos ser um pouco melhor; buscávamos uma conexão com Deus revivendo um pouco da Sua passagem pela Terra.
Particularmente, não encontrei Deus nos templos em ruínas, nas calçadas milenares ou nas relíquias sagradas. Ao contrário, acho que Deus não estava nas coisas: estava na paciência em explicar pela quarta vez como conectar o Wi-Fi no ônibus; nas gargalhadas no quarto de hotel ao relembrar os percalços do dia; no cuidado com os mais velhos ao descer escadas ou subir no ônibus atrás de um guia em disparada. E, principalmente, sentado na poltrona 34D do avião, rindo da aeromoça que tropeça na mala que um passageiro recusa-se a tirar do corredor.