Morar em São Paulo significa, entre muitas outras coisas, estar acostumado à poluição, ao trânsito e a quatro estações em um dia: você sai de casa com frio e chega ao trabalho derretendo; sai de casa de regata e dez minutos depois está na chuva. São Paulo é também a cidade que tem muito de tudo: muito restaurante, muito espetáculo, muita gente, muita enchente. Só o que São Paulo não tem muito são turistas.
Costumo ouvir que os europeus são rudes com turistas, o que sempre me pareceu uma grande injustiça. “Eles sustentam a cidade! Viajam 30 horas só pra ver um quadro minúsculo ou um prédio velho, como assim não gostam deles?!”, bradava. Até que cheguei à Europa.
Basta visitar qualquer cidade turística para perceber que os invasores estão por toda parte, ocupando calçadas, atrapalhando filas, passando vergonha para tirar fotos e amontoando-se em restaurantes considerados cinco estrelas pelo
Trip Advisor.
Florença, por exemplo, é uma verdadeira cidade cenográfica: lotada de construções fascinantes e pessoas que não moram ali. Um jovem fiorentino abre a porta de casa e é atropelado por um grupo de chineses com paus de selfie; ele consegue chegar até a esquina, mas é freado por uma família americana de bermuda que toma sorvete (e a calçada): “Oh meu Deus! Este não é o sorvete mais delicioso que você já tomou em toda sua vida, Josh?” O jovem tenta atravessar a rua estreita, mas um jovem casal de mochileiros dinamarqueses que está cruzando a Europa Ocidental a pé com um filho no colo e outro no ombro pede passagem. Como não odiá-los?
Ser turista é também deixar de lado algumas convenções sociais básicas, como não assistir a um espetáculo de música clássica com uma caixa de liquidificador no meio das pernas ou não gritar em igrejas. É também extrapolar todos os limites físicos a fim de aproveitar ao máximo cada segundo longe dos filhos, como fazia Silmara, na fila da
Galleria dell’Accademia, com aqueles que deduzi ser sua irmã e seus sobrinhos.
— Essa cidade é maravilhosa! Além do quê, tudo nasceu aqui. A arte nasceu onde? Em Firenze. Dante Alighieri? Firenze! Aquele outro famoso, gênio, como ele chama...?
— Galileu?
— Não, o outro.
— Leonardo da Vinci?
— Isso! Firenze também! Que lugar! Mas ainda bem que eu não trouxe os meninos. Alberto disse ontem que tava sofrendo lá, que eles não param de discutir. Ah, mas é bom, também, sabe? Assim aprende.
— E a perna, tia, melhorou?
— Ah, eu nem sinto mais. De manhã eu tomo um
Tandrilax e já saio pra rua. Tô igual nova.
Os meios de transporte também são ótimos locais para observar turistas em seu habitat natural: o estrangeiro. Enquanto um casal de coreanos tenta descobrir como validar o tíquete do trem, dois argentinos debatem se é mesmo necessário validá-lo, e duas inglesas discutem qual o melhor nome italiano.
— Eu gosto de Lucca.
— Eu gosto de Giulia com G. Adoro como soa diferente de Julia. (Oi?)
O avião é outro ambiente ideal para análises e julgamentos. O
A330-900 Neo oferece a decolagem mais silenciosa do mundo, mas nem a Airbus, fabricante da aeronave, nem a Rolls Royce, fabricante das turbinas, contavam com Edneia e Jéssica, na fileira 22, que desafiavam a paz a 10.000 metros de altitude.
— Olha que dia lindo, Jéssica! Céu de brigadeiro, mesmo! — exclama Edneia, do alto dos seus 60 anos, com um forte sotaque carioca. — O céu se mistura com o mar, olha que lindo! E ali embaixo eu vejo a praia.
— Que praia, Edneia, aquilo não é praia, você tá se confundindo — contraria Jéssica, a mesma idade, o mesmo sotaque.
— Mas você é foda com P-H, hein, Jéssica? E eu lá não sei reconhecer a praia? Parece que é a primeira vez que eu venho aqui — devolve Edneia, indignada. — Tem sempre que contrariar! Por isso eu nunca mais vou morar com ninguém. Ah, não tenho mais paciência.
— Ah, eu também não. Até se eu for pra um asilo, vou pagar pra não ter ninguém me enchendo o saco.
O avião avança poucas centenas de milhas. — Olha ali fora os carneirinhos! — continua Jéssica.
— Que diabo de carneirinhos?
— Ah, Jéssica, as nuvens, que parecem uns carneirinhos. Mas tudo que eu falo você implica? Parece que nunca foi criança. Nunca contou carneirinho?
— Claro que fui criança, mas você é criança demais. Um pouco débil, até.
— Ah, Jéssica, vai cagar no mato sem papel!
Será que são um casal?
Começa uma turbulência leve — e eu adoro turbulências. Em um voo diurno de nove horas, a perspectiva de umas bebidas caindo, um carrinho desgovernado, um passageiro em pânico — qualquer situação que tire o tédio! — é bem-vinda. Mas Edneia interrompia o momento com suas teorias aeronáuticas.
— É que a gente tá em cima do mar, aí balança mesmo. Mas o piloto é bom, ele tá desviando a rota um pouquinho pra não balançar tanto. Assim que a gente chegar em Mossoró, que já é terra, aí para, você vai ver.
— Como você sabe disso, Edneia?
— É só olhar no mapa, Jessica, olha aí. Não tá acreditando? E, também, a gente tá em cima da asa, então balança mais porque qualquer lado que mexe, a asa pesa.
— Ih, preciso pegar meu remédio, mas tá na bolsa ali em cima.
— Não pode levantar agora, Jessica, não tá vendo o aviso do cinto?
— E por acaso eu falei que vou pegar AGORA? Eu só falei que preciso pegar, só isso. Eu sigo as regras.
Edneia ri. — Tá bom, Jessica. Logo você? Conta outra!
— As de segurança eu sigo, sim!
A turbulência termina. Elas não.
— Tava pensando aqui, Edneia, esse roteiro que a gente fez foi um caminho meio merda, né? A gente foi de Madri pra Copenhague, pra Hamburgo, pra Roma, pra Lisboa... Olha quanta volta. E eu achei os alemães tão grossos! Só porque parei ali um instantinho já ficavam: “vai, anda, tem fila, não pode parar!”
— Hein? O que você falou?
— Os alemães, ali em Hamburgo.
— O que que foi, Jessica?
— Mas que saco, tá surda?
— Não tá vendo que eu tô escutando o filme, Jéssica?! Aproveita pra ver um filme você também. Ainda tem três horas de voo!
— E eu lá tenho paciência pra ver filme? Na ida assisti 007. Achei tão babaca.
— Ah, isso é verdade, tem razão.
Penso em também assistir a um filme, mas a realidade é interessante demais para que eu busque a ficção.
Quando enfim pousamos, as duas aplaudiram o brilhantismo do piloto, apanharam suas malas e partiram, uma para cada lado, em direção à vida real.
Nunca vou saber a relação entre as duas — seriam irmãs? amigas de infância? colegas de viagem? — mas esta é uma das belezas de viajar: sejam lugares, sejam pessoas, há sempre muito mais ali do que podemos absorver. A gente revela o que quer e capta o que consegue. O resto a gente inventa.
Quando estive em Paris há alguns anos, tentei ao máximo não cometer os dois piores crimes: falar diretamente em inglês com um atendente e parecer um turista. Comentei com meu anfitrião todas as minhas técnicas para me camuflar em meio aos parisienses e não ser alvo de batedores de carteiras e golpistas em geral — como recomendam as
placas e sinais sonoros espalhados pelos pontos turísticos —, mas ele disse que meu esforço era em vão:
— Não dá pra disfarçar: os turistas caminham apreciando a cidade. Pra vocês, tudo é lindo.
Talvez isso não seja assim tão terrível.