Minha família se divide em dois grupos: os que evitam os médicos ao máximo e só vão a um consultório quando estão tossindo há três semanas e os que à primeira dorzinha vão correndo para a lista de médicos conveniados, buscando o reumatologista mais próximo.
Eu sou o presidente do segundo grupo.
Minha jornada de saúde envolve exames de tomografia, ressonância, audiometria, laringoscopia, ureteroscopia, além de passagens por gastros, uros, físios, oftalmos, neuros, otorrinos e, principalmente, dermatologistas.
Minha primeira dermatologista era a esposa do meu meu pediatra. Era minha primeira incursão no mundo das tetraciclinas, isotretinoínas e ácidos salicílicos. Passei grande parte da adolescência lutando contra espinhas em um 7 a 1 diário, com cremes, antibióticos, limpezas e peelings ácidos, até que resolvi usar outras armas e consultei outra dermatologista que, sob os protestos da minha mãe, me receitou a mãe de todas as drogas, aquela que acabaria de vez com a acne (e talvez com o meu fígado, e com a minha capacidade de amar), e traria de volta ao meu rosto a pele de bunda de neném: o Roacutan.
“Depressivo fica quem tem espinha, não quem está tratando!”, assegurava a médica, enquanto rebatia os efeitos colaterais do seu herói. “Precisa ver essas pintas também, hein? E protetor solar, ‘tá usando? Tem que usar!”
Após um ano de exames de sangue bimestrais, secura nos olhos, nariz e boca, e protetor solar, a batalha parecia, enfim, vencida. Até que, uma década depois, conforme devidamente informado na bula, elas voltaram: não tão agressivas, mas sorrateiras, à espreita, sempre prestes a aparecer na véspera de um casamento. E não voltaram sozinhas! Vieram acompanhadas de um clássico dos homens que deixam a tenra idade para trás: a queda de cabelo.
Meu novo dermatologista atacou todos os problemas em consultas de 13 minutos e com medicamentos manipulados: uso oral, uso tópico, uso utópico.
“Problema pra transar tem quem é careca, não quem está tratando!”, assegurou ele, tentando me tranquilizar quanto aos 2% de chance de impotência com o uso de Finasterida. “Fica tranquilo, seu nível de testosterona é muito alto, por isso as espinhas e a queda de cabelo.” Saí do consultório cheio de receitas, amostras grátis e virilidade. “E filtro solar, tá usando? Toma aqui mais uma receita.”
Mudei de plano, mudei de médico e mudei minha visão de mundo ao perceber que, pela primeira vez, meu médico era mais novo do que eu. Eu podia estar salvando vidas, tirando pintas, curando doenças, mas não: fico aí, escrevendo historinhas e vendo séries…
Foi com essa bagagem médica que cheguei ao consultório da minha mais nova consultora dermatológica, Dra. Patrícia. Relevei o fato de que havia-se formado na escola no mesmo ano em que terminei o mestrado e, como um aluno aplicado em dia de prova, cheguei disposto a impressionar. Anos de experiência na área não haveriam de ter sido em vão!
— Conta pra mim, Antoniô, o que te trouxe aqui hoje?”
Só médicos e professores em primeiro dia de aula me chamam de “Antoniô”, logo, tudo seguia no caminho certo.
— São duas coisas. A primeira é a acne que deu uma piorada. Já usei tetraciclina, isotretinoína, agora estou com adapaleno e peróxido de benzoíla, mas não sei se de repente tem algo novo — disse eu, como um médico em um congresso que discute as novas drogas do mercado.
— Não, está ótimo! É isso mesmo. Está usando filtro solar? Tem que usar!
— Tentei de tudo, até manipulado: todos me dão espinha. Recentemente achei um que parece funcionar.
Ela abriu a gaveta e me deu um pot-pourri de mini-protetores.
— Tente esses, são todos ótimos — disse entregando meus velhos inimigos de guerra.
— Bom, além disso tem as pintas.
Saquei nerdemente minha pastinha e mostrei minha dermatoscopia: um exame com fotos de todas as pintas (oficialmente, “nevos”) do meu corpo.
— Uau, muito bom! E, conta para mim, Antoniô, por que você fez esse exame? Tem algum caso de câncer de pele na família?
— Tem sim. Eu mesmo.
Seus olhos brilharam. Aproveitei sua fascinação e continuei:
— Em 2005, extraí um nevo no dorso e o resultado do exame acusou um melanoma. Fui ao oncologista e ele pediu para refazer o exame e concluiu que não chegava a ser um melanoma, mas um nevo melanocítico de alta atipia, então ele fez uma extração com ampliação. Depois disso tirei mais umas 15 pintas. Agora eu só acompanho.
“Que homem! Que case!”
— E você sabe me dizer porque ele mandou repetir o exame?
“Eu sei! Eu sei!”
— É que no primeiro exame deu que havia tido regressão, então eu ia precisar fazer o exame de sentinela, que tem que tomar anestesia geral e tal. Como esse era o único indicador alterado, ele pediu pra refazer. Aí veio o novo resultado.
Nota 10!
Pati apanhou os exames. Seus olhos brilharam novamente como quem segura uma camiseta usada por um ídolo.
— Foi o Professor Bonifácio que fez a ampliação?! Digo… Doutor Bonifácio. É que eu chamo ele de professor porque faço pós em Onco e tenho aula com ele. Ele é incrível! Se ele decidiu que apenas a ampliação era o suficiente, eu tenho certeza que esse era o melhor caminho. Porque, assim, ele… é uma referência no assunto. Mesmo!
Naquele momento, me senti levemente superior: ela poderia ser a melhor aluna da sala, poderia um dia dividir um consultório com ele, tê-lo como mentor a vida toda, mas foi o meu quase-câncer no dorso que doutor-professor-estrela Bonifácio extraiu com perfeição numa manhã de segunda-feira: isso ela jamais teria!
— Vamos dar ali dar uma olhada nas pintas, então.
Agora com o status de sub-celebridade, tirei a camisa, a calça, a cueca: não eram nem 9h da manhã e uma estranha já escrutinava meu corpo nu.
— Tá tudo certo, pode se vestir. É só continuar acompanhando. Vou te dar um gel secante pras espinhas e um pedido pra uma nova dermatoscopia. Daqui uns meses você volta aqui, hein? Quero te ver de novo!
Não consegui me lembrar da última vez em que me haviam dito “Quero te ver de novo!” com tanto entusiasmo enquanto eu vestia a roupa. Achei que o mínimo que poderia fazer era deixar Doutora Patrícia orgulhosa. Apanhei as receitas, prometi que voltaria, e parti, rumo à farmácia, pronto para fazer a lição de casa e dar uma última chance para minha relação mais conturbada: a com o filtro solar.