Quando eu era
pequeno, um dos grandes ritos de passagem era poder ir sozinho à lojinha de
presentes e guloseimas que ficava literalmente a uma quadra do prédio onde eu
morava. A infância era dividida entre poder/não poder ir sozinho até a Rosinha:
uma distância que podia ser integralmente vigiada por pais atentos da janela da
cozinha.
Fui uma
criança de prédio. Brincava de pega-pega, alerta e esconde-esconde, que incluía
as variações vale/não vale passar pela janelinha. Quebrei vidro, esfolei o joelho,
brinquei na quadra até as luzes apagarem e alguém gritar do terraço que era
hora de subir.
Outro dia
tentei lembrar quando foi a última vez que brinquei de esconde-esconde. Não
consegui. Em algum momento cresci, deixei de passar pela janelinha e, sem perceber,
o “mãe, posso descer?” virou “mãe, tô saindo.”
A Rosinha
fechou. Veio a fase do “não volta tarde”, do “não bebe muito”, do “avisa quando
chegar”.
Tirei carta.
Dei ré com meu Uno Mille numa Mitsubishi Station Wagon na frente de casa. “Pai,
bati o carro.”
Fui morar
fora. Fui morar sozinho.
E então os
papéis se inverteram.
Isso ficou
mais claro do que nunca quando decidi presentear minha mãe e minha tia (que
somam 140 anos de idade) com ingressos para o show de um cantor italiano. Como
um pai caridoso que vai atrás da meia-entrada para o filho adolescente, me vi
em meio a uma odisseia que envolveu duas idas ao local do evento, um sistema
fora do ar e clientes de meia-idade revoltados com o descaso.
— Mas que
inferno isso! Vou processar todo mundo! — esbravejava um.
— Escuta, mas
a gente não saiu de casa pra se divertir? — rebatia a esposa, tentando salvar o
programa, fadado a falhar antes mesmo de começar.
No mesmo
guichê, um pai comprava um ingresso de um show de rock para a filha.
— Ih, só tem
lugar lá em cima. Paciência, vai esse mesmo. E ai dela se reclamar! Ainda vou
ter que vir buscá-la depois do show — confidenciou ele ao senhor que ia
processar todo mundo.
Horas depois,
saio com um par de ingressos na mão e uma série de preocupações na cabeça. Se
eu for levar, como vão voltar? Posso ficar no shopping esperando... Ah, elas
voltam de táxi. Será que é perigoso? Elas não têm aplicativo… Ah, mas na porta
sempre tem táxi. E se eu voltar pra buscar depois? Qualquer coisa tem minha
prima. O que é Uber? Põe o cinto. Carrega o celular, hein? Liga quando chegar.
Sobreviveram. Radiantes.
Curioso pensar
como o jogo vira, como o sol muda de lado. Não importa se você foi um grande
líder, um grande executivo ou um grande boçal: se você tiver sorte — e esta é a
grande ironia — se você tiver sorte, vai viver o suficiente para tomar um banho
de humildade e perceber que você invariavelmente precisa do outro.
Hoje você dá
conselhos, amanhã recebe. Hoje você cuida, amanhã é cuidado. Hoje você pode
estar no alto da roda gigante, mas amanhã — se tiver sorte — ainda vai estar
nela para apreciar a beleza da descida.
Crédito: The King Photography |
Outro dia
cheguei à casa dos meus pais e vi uma carta da prefeitura sobre a mesa.
— Seu pai
levou outra multa, mas não dá bronca nele — disse minha mãe, enquanto tricotava.
Ele desceu as
escadas, veio até mim, cauteloso.
— Viu, eu tomei
uma multa porque eu tava sem cinto, mas já aprendi a lição. Não faço mais, tá
bom?
E foi para a cozinha.