Quando acordei naquela manhã de sábado, não
imaginava que em algumas horas estaria na sala de espera de um hospital público,
trocando mensagens de texto com um policial militar, digitadas na tela
estilhaçada do meu próprio celular.
O dia começou no chão de uma sala de aula na Zona
Sul de São Paulo, onde acordei determinado a pintar aquela instituição, ao lado
de outras pessoas que trocaram dias de descanso por um fim de semana com rolos,
pincéis, pó no nariz e uma sensação de realização (e dores no corpo) digna de
um maratonista ao cruzar a linha de chegada.
Mas como bem sabe Vanderlei Cordeiro de Lima, nem sempre tudo
sai como esperado.
Sentado no chão, observava enquanto Luks caminhava
sobre o telhado, pintando a parte superior de um dos prédios.
Sentado no chão, percebi quando a telha cedeu.
Sentado no chão, percebi quando
L
U
K
S
caiu pelo vão do telhado e veio ao
chão, levando consigo a escada que atrapalhava sua queda livre.
Sentado no mesmo
chão, percebi o barulho da queda transformar-se em silêncio enquanto a multidão
aglomerava-se ao seu redor em meio a suspiros de meu Deus, o que aconteceu?
Na dúvida entre um braço quebrado e um mero
arranhão, partimos, Luks e eu, rumo ao hospital, a bordo da ambulância do SAMU.
Ele imobilizado com um colar cervical, eu tentando entender em que momento dos
minutos anteriores a tela do meu celular se espatifara.
— Já andou de ambulância? – pergunta a paramédica.
— Não – ele diz.
— E você? – brinco com ela.
Já na sala do pronto-socorro, aguardamos
atendimento em meio a pacientes com crises de asma, ossos quebrados e cortes
misteriosos.
— Seu sobrenome é Barros? – pergunto.
— Não, por quê?
— Erraram seu nome na pulseira do seu braço.
— Que ótimo.
...
— Você fez cinema, né?
— Aham. E você escreveu um livro né?
— Aham. O que você curte de filmes?
— Gosto muito do Wes Anderson, sabe?
— Sei! Curto muito aquele...
— Isso.
— Eu também.
— Tem muita gente aqui?
— Oi?
— É que eu não consigo olhar pro lado com esse troço
no pescoço.
— Ah! Tem umas quatro. O da sua esquerda parece
estar desmaiado...
Chegam mais alguns. Pedem que eu aguarde na sala de
espera, onde em meio a atendentes sobrecarregados e pacientes desesperados, um
familiar ansioso encontra outro, já mais aliviado.
— ‘Tão costurando ele agora. Saiu a pele da mão
todinha, veio parar aqui no braço!
— Mas graças a Deus não perdeu a mão!
— Quando eu entrei aqui, acredita que o segurança
falou: “Tá procurando o rapaz da padaria? Esse aí perdeu a mão...” Pode?!
— Imagina a força que ele fez pra puxar o braço!
— Eu sabia! Quando falaram o que aconteceu, eu logo
pensei: “alguma coisa emperrou na máquina e o Thiago foi lá consertar. É a cara
do Thiago fazer isso!”
É a cara do Thiago...
Uma enfermeira me chama. Perceberam que o sobrenome
de Luks não é Barros. A atendente sobrecarregada faz a correção.
Meu celular vibra. Um joinha de um número
desconhecido surge na tela quebrada – o mesmo número que me ligara cinco vezes
na madrugada anterior, quando a tela ainda não cortava meus dedos.
Quem é?
Antonio
Filipe?
Sim. Quem é?
O senhor
teve um celular roubado
em outubro
de 2015?
[foto do
celular]
[foto do
B.O.]
Sim. Quem é?
Soldado
Afrânio. Nós recuperamos o seu celular
numa
operação ontem à noite.
Sério?! E agora...?
Pode
comparecer à XXª DP com o B.O.
e retirar o
aparelho. Mas liga lá antes!
E parabéns
por ter registrado o roubo.
Nossa. Obrigado!
De nada.
Viu, se o
senhor quiser e puder
mandar um
e-mail de agradecimento
ao batalhão,
este é o e-mail: [e-mail]
[fotomontagem
com celular, viatura e brasão]
A enfermeira me chama novamente. Seguimos para o
raio-X. Passadas três horas desde o embarque na ambulância, apenas um
sentimento toma conta de nós dois: fome.
O raio-X aponta o que a essa altura já tínhamos
certeza: todos os ossos estão em seus devidos lugares.
— Mas, assim, eu não sou ortopedista, né? O ideal
seria o senhor passar com o especialista antes de ir – informa o médico.
— Naaa, ‘tô de boa.
— Então é só ir até a sala 10 que a enfermeira tira
o acesso pra você.
— Dói muito pra tirar – pergunta Luks à enfermeira,
já na sala 10.
— Dói menos que pra colocar, né, meu filho. Vocês
fazem cada pergunta...
Quem seriam “vocês”? Vocês homens? Vocês jovens?
Vocês pessoas que caem do telhado?
Uma acompanhante agitada aparece à porta.
— Moça, minha filha ainda ‘tá com muita dor! O
remédio não ‘tá fazendo efeito!
— VOCÊ NÃO ‘TÁ VENDO QUE EU SÓ UMA SÓ?! ELA VAI TER
QUE ESPERAR! – brada a enfermeira enquanto arranca a agulha do braço de Luks.
Partimos.
Luks volta às atividades em meio a gritos de e aí,
‘tá tudo bem, não foi nada, mesmo? Eu ligo para a delegacia. Pedem para que eu
ligue na noite seguinte, depois na manhã seguinte.
— Amigô, isso aqui é uma delegacia! Sabe quantos
celulares tem aqui?!
Pedem que eu compareça pessoalmente. Compareço
pessoalmente. Aguardo enquanto um rapaz faz um B.O. de uma mochila roubada.
—Volta daqui a 40 dias, quando o escrivão que guardou
seu celular volta de férias. Vai saber em que armário ele guardou o celular...
Como diria Red ao final de Rita Hayworth and the Shawshank Redemption, eu espero que tudo dê certo.
Eu espero que fazer o B.O. seja o suficiente para
recuperar um celular roubado.
Eu espero que a moça com dor tenha se recuperado.
Eu espero que Thiago possa voltar a trabalhar.
Eu espero que médicos e enfermeiros tenham
sobrevivido àquele turno, e aos outros.
Eu espero que nosso trabalho tenha feito a
diferença naquela comunidade.
Eu espero.
Luks, eu, os maratonistas e o telhado. |