quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Efeito borboleta

     Há pouco mais de seis anos, estive no Alasca com meu amigo Paul, e um dos lugares mais fascinantes que visitamos - entre tantos - foi uma baía chamada Sadie Cove. Naquele cenário praticamente deserto e eternamente iluminado, povoado apenas por animais silvestres e pouquíssimas cabanas como a que estávamos, decidimos nos aventurar em dois caiaques até o final da baía. Enquanto Paul aproveitava seu tempo tirando fotos das águias no céu e dos ursos a distância, eu seguia firme no meu propósito de chegar ao outro lado. Em certo momento, Paul deu-se por satisfeito com o passeio e decidiu voltar; eu segui: cheguei ao meu destino e decidi não descer do caiaque, mesmo com vontade de fazer xixi, em parte porque descer do caiaque sobre a água congelante exigia uma logística além do que estava disposto a enfrentar, em parte por medo de ser atacado por ursos que pudessem aparecer por ali. Ao me virar parar voltar, vejo Paul como um pequeno ponto já próximo à cabana. E uma enorme nuvem negra vindo em minha direção. Começo a remar e percebo que praticamente não saio do lugar… Não há o que fazer senão controlar a bexiga, lutar contra a cãibra e continuar a remar para chegar à cabana antes da tempestade. “Estou vivendo uma grande aventura ou entrando em pânico?”

     Foram cerca de 40 minutos para ir e mais de duas horas para voltar. 

     Paul me recebeu aliviado, mas também um pouco irritado. “Por que você não voltou antes?! Você e essa sua mania de fazer as coisas até o fim!” 

     Eu e essa minha mania de fazer as coisas até o fim… Eu nunca tinha pensado em mim dessa forma, como alguém que “sempre faz as coisas até o fim”. Se tivesse, porém, teria levado isso como um elogio. É excelente terminar projetos, concluir planos, tirar tudo da gaveta para arrumar o quarto e, de fato, colocar tudo de volta. Mas o ponto é que as coisas mais importantes talvez sejam justamente as que não podemos fazer até o fim, as que não podemos ter controle.

     Temos planos para a nossa vida, aí seguimos por ela e vemos que ela tem planos diferentes para a gente. Temos planos para os nossos filhos, aí seguimos e vemos que eles também têm seus próprios. Todos começamos uma jornada, direcionamos nossos caiaques, mas nem sempre cabe a nós concluir a viagem. É como o fenômeno fascinante do ciclo migratório das borboletas monarcas: borboletas que viajam milhares de quilômetros, de norte a sul dos EUA, fugindo das baixas temperaturas e buscando alimento. Não seria nada extraordinário, não fosse um pequeno detalhe: elas nunca completam o ciclo. Como sua expectativa de vida é baixa, são necessárias várias gerações de borboletas para chegar ao destino, de forma que nenhuma delas irá percorrer todo o trajeto. Algumas começam a jornada, outras terminam.

     Recentemente as filmagens do meu primeiro longa-metragem foram concluídas. A jornada começou há mais de dez anos, em um computador que não existe mais, num quarto que não é mais meu. Lá começaram a surgir personagens, cenários, conflitos. Por muito tempo a jornada foi solitária: eu e eles. Passaram-se alguns anos, surgiu um diretor/produtor para dar um sopro de vida à história, dar um endereço e um coração aos personagens. Mais alguns anos se passaram, mais artistas entraram na jornada, deram cor, luz, som; atores literalmente deram vida às famílias que existiam apenas em forma de palavras. 

     E ali a jornada deixou de ser minha. 

     Uma nova geração de borboletas fez a história nascer em forma de filme e coube a mim apenas testemunhar o espetáculo. Em alguns meses, essa nova geração também termina sua jornada, e uma outra vai assistir a essa história e levá-la adiante para as gerações futuras, em uma jornada que eu jamais saberei como irá acabar. 

     E tudo bem, porque às vezes na vida a magia está justamente em começar uma jornada para que outros a terminem.

Bastidores de "Do Outro Lado da Lua" (dir. André Gevaerd) / Foto: Santi Asef