sexta-feira, 31 de outubro de 2014

The unfriendly skies

Saí mais cedo de casa, já pensando que entre cruzar a cidade, devolver o carro alugado e despachar a mala, era possível haver imprevistos. Cheguei ao LAX com menos tempo livre do que previa, graças à demora na devolução do Nissan Versa – que foi parar na minha mão depois de o Ford Focus apresentar um problema no motor e de o Hyundai Elantra ficar sem pneu.

Procuro um ser humano no guichê do check-in da United, pronto para voar “the friendly skies”. Não há nenhum. Uma atendente se aproxima.

- Vai fazer check-in?

Não, não. É que eu gosto de visitar aeroportos e trazer minha mala pra passear.

- Sim.

- É tudo automático. Você tem que usar aquela tela ali – esclareceu ela com a cortesia típica de alguém radiante em estar trabalhando às 10h da noite de um domingo.

Coloco minha mala na balança. 56 libras. Um novo atendente se manifesta.

- O limite é 50. Você precisa tirar 6 libras.

Explico que meu ticket me permite levar 70 libras. Ele ignora. A primeira atendente retorna. Aquela, radiante em estar trabalhando às 10h da noite de um domingo.

- Qual é o problema?

- Meu voo é parte de um trajeto internacional para o Brasil, por isso posso despachar duas malas de 70 libras.

- Não, não pode. Se quiser discutir, vai falar com aquela senhora no guichê número seis.

Sigo com minha bagagem até o guichê número seis. Uma senhora de um metro e cinquenta se aproxima. Não sei dizer se era asiática, latina ou ambos. Vamos chamá-la de Nancy. Explico a situação a Nancy. Ela me olha com desdém. Ou melhor: com pena. “Esse idiota acha que vai embarcar com uma mala de 56 libras!” Ela pergunta qual o destino do meu voo.

- Filadélfia, com conexão em Houston.

- Então, “querido”, seu voo é local.

- Então, “querida”, o site de vocês informa que este trecho, por ser parte de uma viagem com origem e destino no Brasil, me permite despachar duas malas de 70 libras.

- Não, essa não é nossa política – responde ela, nada “friendly”.

Desisto de discutir e chego à conclusão de que é mais fácil transferir as 6 libras para minha bagagem de mão e encerrar o assunto.

Forço o zíper emperrado na bermuda e abro a mala no meio do saguão. Entre presentes e cuecas usadas, resgato alguns itens mais pesados, como dois potes de limpa-carpete em pó – os quais, descobriria depois, poderiam ter sido comprados com toda facilidade na cidade-destino.

Neste momento, Nancy se aproxima.

- Quando é mesmo seu voo para o Brasil?

- Semana que vem.

Eis que Nancy começa a gargalhar.

Não costumo ter pensamentos homicidas, mas Nancy soube resgatá-los.

- Do que você está rindo? – pergunto, contendo meus instintos.

Nancy ignora a pergunta e volta, sorridente, ao seu posto no guichê número seis. “Friendly”.

Respiro fundo, sento sobre a mala de mão para conseguir fechá-la e despacho a mala maior – não sem antes provar para o atendente número 2 que não, eu não precisava pagar pela mala despachada.

Corro para o controle de segurança, a essa altura já em cima do horário para o voo. Passo pelo raio-x. Um agente me chama para o canto.

- Senhor, precisamos abrir a sua mala. 

Aquela, que eu precisei sentar em cima para conseguir fechar.

Ele retira o pote de limpa-carpete em pó, é claro, e chama um novo agente, que ainda está em treinamento.

- O senhor está atrasado para o voo?

- Ainda não – respondo apanhando o relógio, o celular, o laptop, o casaco, os sapatos e a pasta de dente da esteira.

Luvas, máscaras, conta-gotas: todo um aparato é utilizado para provar que não, o limpa-carpete que deveria estar na mala despachada não é cocaína.

Enfim chego ao portão, já no meio do embarque, e, seis horas mal dormidas depois, chego ao destino. Reencontro minha mala de 50 libras na esteira e sigo ao encontro de minha irmã, que me aguarda. Já a caminho do carro, algo chama sua atenção.

- Por que sua mala tem pregos saindo pra fora?

- Que pregos? – pergunto, antes de notar a famigerada mala sem um dos pés.

- Quer voltar lá pra reclamar?

Retorno ao balcão de malas perdidas e aguardo enquanto uma funcionária explica a um passageiro do meu voo que sua mala pode estar em Nova Iorque, na Califórnia ou no Alasca.

- Posso ajudar?

- Sim. Vocês quebraram minha mala.

Ela observa o dano.

- Seu voo era nacional ou internacional?

Como é possível que uma pergunta tão banal tenha se tornado tão complexa nas últimas horas?

- Nacional – arrisco.

- Então, é que para voos nacionais a companhia não cobre danos nas rodas, nos pés o nas alças. Só na estrutura.

- Bom, na verdade, esse voo é parte de um ticket internacional...

Ela checa no computador. Pergunto qual a lógica por trás de tal política.

- It’s business – ela responde com um sorriso cúmplice. O ticket internacional é mais caro, logo, tem cobertura maior.

Ela desaparece por alguns minutos e retorna com uma mala nova em folha. Pela segunda vez em 12 horas, abro minha mala no meio do saguão e transfiro os presentes e as cuecas usadas para a mala nova. A funcionária parte com a minha, que será consertada e repassada a algum felizardo que tiver sua mala destruída em um voo “friendly”.

Chego em casa e logo acesso o site da companhia, fazendo uma reclamação formal sobre o atendimento “friendly” de Nancy e sua trupe, indignado com a falta informação de toda equipe. “Humilhado! Desrespeitado! Decepcionado!”, para destacar algumas palavras. Drama!

Uma semana depois, já de volta ao Brasil, recebo a resposta da United, com um pedido de desculpas pelo comportamento de Nancy, porém afirmando que “após uma análise cuidadosa do meu itinerário, foi constatado que a política de bagagem aplicada estava correta.”

Respondo, frustrado, encaminhando a informação dada pelo próprio site da companhia, provando que eu tinha razão. Observo minha mala nova, buscando consolo. Mas meu esforço é em vão.



Já posso ouvir Nancy gargalhando, triunfante, em frente ao guichê número seis, enquanto aguarda sua próxima vítima, que espera, inocente, voar “the friendly skies”.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Cem anos sem solidão

Hoje minha avó faz 100 anos.

Cem. Anos.

Paremos aqui um instante. Ter 100 anos significa ter nascido antes de existirem Copas do Mundo. Antes de inventarem a televisão. Antes de existirem voos comerciais.

Significa ter vivido as duas Guerras Mundiais.

Acompanhado vinte e duas Olimpíadas.

Visto nove Papas.

Significa também que TODAS as pessoas mais velhas que conheceu já não vivem mais...

Conhecer alguém com cem anos também incita à inevitável pergunta: qual o segredo?

Minha avó nasceu na Itália e provavelmente teria sido freira, não tivesse conhecido meu avô e vindo para o Brasil – em uma época em que dizer adeus significava, mesmo, dizer adeus.

Assim, desafiando todas as expectativas de quem observa a pequena senhorinha na missa das sete, minha avó viria a ser uma das pessoas mais ousadas que já conheci.

Teve um marido, quatro filhas, dez netos e onze bisnetos. Insistiu em morar sozinha dos 66 aos 96 anos, nunca teve um celular e dizia sem pudor quando não gostava de um presente. Quer ousadia maior?

Recentemente sua mente deixou de acompanhar seu espírito e sua lucidez começou a se esvair, mas não sem antes termos esta conversa, supostamente trivial:

- Tá tudo bem com você?
- Tudo sim, Nonna.
- Tá gostando do trabalho?
- Tô sim.
- Porque se não estiver, vai pro próximo! Só não fica parado. Não tá bom? Segue em frente!
- Pode deixar, Nonninha.
- Sabe, eu posso te dizer: eu fiz tudo o que queria na vida... Não me arrependo de nada!

Demorei alguns instantes para absorver a magnitude da afirmação.

Se já são pouquíssimos os centenários no mundo, o que dizer dos que vivem um século podendo dizer o mesmo?

E então me pareceu claro que o segredo para viver mais tempo é simplesmente viver mais.


Nonninha intrigada com meu iPhone.