sábado, 10 de dezembro de 2011

Histórias que poderiam ter sido

Certa tarde, há muitos anos, estava com meu amigo Bob na biblioteca da faculdade de veterinária procurando um livro sobre a reprodução dos avestruzes para uma amiga quando uma garota sentou-se na mesa ao lado. Três segundos depois, Bob estava apaixonado – sem sequer haver trocado olhares com ela. Após alguns minutos de discussão, Bob decidiu que seria prudente não informá-la sobre os filhos que teriam juntos, nem sobre o nome que dariam ao cachorro, nem sobre o tamanho de sua futura casa – ou de certas partes de seu corpo.

Minutos depois, a garota se foi - sem saber que destruíra um lar imaginário - e Bob, parafraseando Manuel Bandeira, suspirou: “Ah, histórias que poderiam ter sido...

E esse virou nosso jargão: quantas “histórias poderiam ter sido” se tivéssemos tomado uma decisão diferente, se tivéssemos agido, se tivéssemos virado à esquerda, se tivéssemos ido àquela viagem. Quantas histórias poderiam ter sido se decisões tomadas por quem sequer conhecemos tivessem sido diferentes.

Durante meu intercâmbio para Austrália no Ensino Médio, conheci uma garota suíça com quem conversava vez ou outra. Às vezes nos encontrávamos no ônibus, às vezes nos víamos no intervalo das aulas da extinta Beacon Hill Technology High School enquanto tomávamos o cremoso leite com chocolate de caixinha que só a escola oferecia. Sempre senti que havia algo ali, mas o auge dos meus dezesseis anos e de minha bananisse me impediram de tomar qualquer atitude. Um dia antes de voltar ao Brasil esbarrei com ela na escola e disse que estava de partida. Desapontada, ela anotou seu endereço em um pedaço de papel. “Agora é minha chance!”, pensei...

...Só pensei.

Nos abraçamos, nos despedimos, e nunca mais nos vimos. Nunca mais nos falamos.

Já no avião, notei o papelzinho ainda no bolso da calça... e nele havia algo mais que o endereço; algo que me fez acreditar que aquela história, de fato, poderia ter sido...

*  *  *

Meses antes de me mudar para os EUA para estudar no AFI, conheci meus futuros colegas pela internet, entre eles um americano chamado Andrew. Após nos certificarmos (na medida do possível) de que não éramos serial-killers e/ou fazíamos parte de uma seita macabra, decidimos que seríamos roommates. Durante os meses seguintes conversamos várias vezes por semana, descobrimos interesses em comum, planejamos viagens para o Alasca, decidimos que ficaríamos em um albergue assim que chegássemos e procuraríamos um apartamento perto da escola. Enfim, nos tornamos amigos.

Uma semana antes de sair do Brasil, recebi um longo e-mail de Andrew me dando a triste notícia que ele não poderia mais ir ao AFI.

Com meus planos escorrendo pelo ralo, tive de encontrar novos roommates às pressas e fui morar com dois completos desconhecidos – um deles dormindo na sala. Durante todo o primeiro (e mais difícil) mês em L.A., só pensava em como tudo seria mais fácil se tivesse saído como planejado. Como eu queria que aquela história tivesse sido...

Mas o que eu não sabia é que se aquela história tivesse sido, meses depois eu não teria feito uma inesquecível road trip de 5.000 quilômetros ao redor do Grand Canyon com meus inesperados amigos; não teria conhecido o Texas, nem a família de Logan, nem teria vivido com seu fiel escudeiro Lebowski.

Só fui conhecer Andrew pessoalmente um ano depois, de passagem por sua cidade por algumas horas. Durante um almoço corrido em uma tarde incrivelmente quente, contei apressadamente as histórias do AFI – histórias que, pra ele, poderiam ter sido. Em contrapartida, Andrew me contou sobre sua vida fora do AFI, que incluía, entre outras aventuras, uma fascinante viagem à Antártica – a história que, pra ele, foi.

Inevitavelmente, cada pessoa que conheço, cada nova amizade que se forma, me faz pensar nas histórias que poderiam ter sido. Como teria sido conhecer aquela pessoa anos antes? Ter ido à sua formatura? Àquela festa de aniversário? E como teria sido não conhecê-la? Não ter ido àquela viagem?

Inevitavelmente, cada pessoa que conheço, cada nova amizade que se forma, também me leva à assustadora conclusão de que há pessoas no mundo que eu jamais vou conhecer; de que há amizades que jamais vão se formar: são histórias que eu nem sequer sei que poderiam ter sido.

E é durante esse devaneio sobre as pessoas que não vou conhecer, os lugares que não vou visitar e as experiências que não vou ter que tudo surpreendentemente volta a fazer sentido: é quando me lembro de que sou escritor, e de que o escritor vive em Pasárgada. É quando me lembro de que a cela do meu mundo real tem uma janela para o infinito.

É quando me lembro de que, no meu mundo, todas as histórias podem ser.



(Bob casou-se hoje com a mulher de sua vida e está de mudança para os EUA. Vai viver a história que tinha de ser.)