sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ensaio sobre a surdez

Outro dia, ouvindo um dos episódios do programa de rádio This American Life, conheci a trágica história de um médico adorado por seus pacientes que estrangulou o próprio pai.

A história é longa e complexa, mas um elemento importante é que o médico, já na cadeia, alegando problemas neurológicos, pedia insistentemente por 80 miligramas de um medicamento chamado Celexa. Anos se passaram até que ele fosse corretamente diagnosticado. 

A medicação recomendada? 80 miligramas de Celexa.

Uma das perguntas que o programa levanta é: por que ninguém o ouvia?

Em situações menos drásticas, o mesmo acontece. Você está no McDonald’s e pede um McChicken com suco de maracujá. A atendente replica:
- Qual a bebida?
- Suco de maracujá.
Ela fala o valor.
- Aceita ticket?
- Sim.
Você entrega o cartão.
- Crédito ou débito?
- É ticket.

No Cinemark, a mesma coisa. Você pede uma pipoca média com manteiga.
- Qual o tamanho?
- Média
Ela pega o saquinho.
- Manteiga?
- Sim.
Na hora de pagar você entrega o cartão.
- Crédito, por favor.
Ela apanha o cartão.
- Débito, né?

Outro dia fui ao Banco do Brasil com o médico que me vendeu seu carro. Ele precisava pagar o IPVA. Tentou no autoatendimento. Não conseguiu. Quis pegar uma senha para pagar no caixa. O funcionário implicou.
- Você precisa pegar a guia aqui no autoatendimento primeiro.
- Não dá. O carro é do Distrito Federal, preciso pagar direto no caixa.
O funcionário insiste. Ele volta ao autoatendimento. Em vão.
- É, realmente, não dá.
- Posso tentar no caixa? Eu já paguei lá um vez, tenho certeza que dá.
- Pode, mas você vai perder seu tempo, não vai conseguir.
Conseguiu.

Um mês depois, é minha vez de pagar o licenciamento do mesmo carro, no mesmo banco. Consigo chegar ao caixa sem obstáculos. Entrego o documento do veículo ao atendente.
- Bom dia, preciso pagar o licenciamento.
- Você precisa pegar a guia no autoatendimento primeiro.
- Então, na verdade, como esse carro é do Distrito Federal, é diferente. Eu sei que preciso pagar direto no caixa.
- Olha, deixa eu te explicar uma coisa: não importa o que você me disser, você não vai conseguir pagar o licenciamento sem passar no autoatendimento antes.
A atendente ao lado interfere.
- Ah, não, peraí. Quando é do Distrito Federal é diferente.
Ela aperta algumas teclas no teclado dele.
- Tem que colocar esse código.
Ele sorri sem graça para mim.
- Ah, é uma exceção, né? É que a gente já tá tão acostumado com o outro jeito...

Exato. Por isso, bastava ter ouvido.

Semanas depois, no Detran, ninguém sabe me informar, claramente, que taxas pagar. Até que uma supervisora me avisa:
- Pague a taxa como carro novo, não como carro usado. Se você pagar errado, a burocracia pra receber o reembolso é grande.
Não me convenci. Olhei na internet e vi uma informação diferente. Paguei diferente.
Resultado? Até hoje tento receber o reembolso da taxa.

Bastava ter ouvido.

Não é à toa que um dos lemas do programa social com o qual sempre estive envolvido é: “Toda criança merece ser ouvida.” Encontrar alguém que de fato ouça o que você está dizendo – e não esteja apenas esperando sua vez de falar – é cada vez mais difícil.

Com a velocidade que a informação viaja hoje em dia, a ilusão de que estamos nos comunicando é grande. Facebook, Twitter, Blog, SMS, comentários em notícias da internet: falar é fácil, mas será que alguém está ouvindo?


A julgar pela conversa entre minha irmã e minha sobrinha de 7 anos, ainda há esperanças:

- Mami, hoje eu tenho lição de casa, mas não preciso fazer.
- Por que não?
- A lição é treinar ficar quietinho enquanto o outro fala.